Ser gorda.

today-what-not-to-say-overweight-1200x480

Sou gorda desde que me conheço como pessoa.

Pensar que nasci com um peso normal e que ficaram todos muito preocupados porque perdi imenso peso nos primeiros dias de vida… até parece mentira. Eu com baixo peso? Memorável!

As primeiras memórias que tenho do meu físico é de um corpo muito “maior” do que o das minhas amigas do infantário, muito “maior” que os das minhas primas.

Lembro-me da dificuldade em encontrar roupa que me servisse desde muito cedo.

Quando fiz a minha primeira comunhão já não havia vestidos que me servissem nas lojas onde todas as meninas da minha idade compraram os vestidos delas. Lembro-me de ficar triste. A minha mãe teve que ir a uma costureira e mandar fazer o meu vestido por medida. Tinha uns sete ou oito anos.

O meu percurso escolar – como o percurso escolar de todos os gordos, creio – foi marcado por violência. No meu caso, a violência era verbal. Nunca me bateram por ser gorda.

Apesar de alguma timidez, sempre fui uma “rapariga bem disposta” e sempre tive facilidade em fazer amigos. Ainda hoje tenho amigos dessa altura.

Ao longo dos anos eram constantes os comentários em relação ao meu peso.  Era a “baleia”, “a gorda”, “o pote de banhas”, “o zombie”, sei lá eu que mais. E não me digam que “as crianças são muito cruéis” porque os adultos – quando querem – são ainda mais. Já passei por algumas situações lamentáveis de homens e mulheres bem crescidinhos.

Na escola, alguns dos meus colegas disparavam comentários e ofensas – à velocidade da luz – e a única repreensão que recebiam (caso algum responsável ouvisse) era: “Não se diz isso”. E a conversa ficava por ali.

Se esse tipo de ambiente me incomodava? Claro que me incomodava. Eu queria ser como as outras meninas da minha idade. Mesmo assim, acho que este tipo de coisas nunca me perturbou severamente. Ficava triste mas lá seguia com a minha vida com as gargalhadas que sempre me caracterizaram. Sei que nem com todos os gordos é assim.

Mais tarde, quando entrei para o secundário o cenário era mais ou menos o mesmo. Logo no primeiro ano, não me disseram diretamente, – talvez para me protegerem – mas percebi que tinha sido recusada para fazer um estágio num gabinete de contabilidade por causa do meu peso. Mais do que triste, fiquei envergonhada perante os meus colegas. Cheguei a casa e chorei. Valeu-me a minha amiga Susana, que dissessem o que dissessem me dava o braço todos os intervalos com uma ternura inigualável.

Depois tive a sorte de estagiar na secretaria de uma escola onde me trataram muito bem. Ensinaram-me imenso e saí de lá com vários laços. “Há males que vêm por bem”.

Estive nesse sítio durante os três anos de formação e nunca – em momento algum – me senti descriminada por ser gorda. Aí senti que ainda havia pessoas desprovidas de preconceitos e dispostas a aceitar-me como eu era.

Quando decidi ingressar na faculdade, a saga continuou… mas um bocadinho mais disfarçada. As bocas entre os dentes eram muito comuns… depois começaram os insultos atrás de um computador (num blogue medonho) … só me conseguia rir… tal era a cobardia. Não me sentia ofendida, só consegui sentir pena daquelas tristes pessoas.

Estava eu em plena licenciatura em Ciências da Comunicação quando um fedelho (que ainda é da minha família) me diz: “Tens que emagrecer, tu nunca serás ninguém na vida assim gorda. Sabes que a área que escolheste vive da imagem e tu assim gorda nunca vais conseguir trabalhar na tua área”.

Aquelas palavras ecoaram na minha cabeça dias e dias. Cortei relações. Alguém que me destrata por eu ter uma doença chamada obesidade não merece o meu respeito e – muito menos – estar no meu círculo.

O certo é que concluí a licenciatura e mais tarde tornei-me mestre em jornalismo. Consegui trabalhar num meio de comunicação social nacional e de renome. Lá, fui reconhecida pelas minhas potencialidades, trabalhei com profissionais muito bons e conheci pessoas ainda melhores, que não me julgaram pelo meu aspecto físico. Fui muito feliz. O que conquistei foi fruto do meu trabalho e não foi a gordura que me impediu de nada.

Depois disso já fui a um sem número de entrevistas de emprego e já me senti rejeitada por causa do peso. Enfim, mentes podres.

O meu peso não define a pessoa que sou ou as capacidades que tenho mas perturba a minha vida constantemente. Enquanto a obesidade não for uma patologia levada a sério e enquanto as pessoas forem preconceituosas, serei encarada como uma pessoa desleixada que está assim porque quer, porque “não fecha a boca” e se “encharca em hambúrgueres”.

A minha alimentação não é perfeita, nunca o foi. Poucas são! Mas desde criança que me foram incutidos hábitos saudáveis e desde cedo que os meus pais me tentaram ajudar a lutar contra este problema. Na casa dos meus pais nunca houve bolachas nem refrigerantes nos armários, os iogurtes eram sempre magros, havia sempre sopa e legumes às refeições, raramente me davam guloseimas, incentivavam-me a fazer exercício físico, pagaram-me um tratamento caríssimo, levaram-me a um número infinito de dietistas e nutricionistas.  Mesmo assim o peso foi subindo de ano para ano num descontrolo total.

A partir dos 15 anos comecei a ter mais consciência das complicações que a obesidade me podia trazer ao nível de saúde e comecei a ter ainda mais atenção ao que comia. [Continuo a ter cuidado até hoje. Mesmo que maior parte das pessoas não acreditem, é a verdade.]

Continuei em dietas e mais dietas. Passei dias na internet à procura de dicas para controlar este meu problema. Já perdi muito peso contando todas as calorias que ingeria, já fiz “trinta por uma linha” e nada resultou. Perdi 20 quilos, aumentei 30 a uma velocidade estonteante.

Hoje continuo a ser obesa. Começo a sentir as consequências disso. Os pés, as pernas e a anca já não aguentam com tanto peso. As dores de costas são terríveis mas continuo a lutar conforme posso. Cansada. Cada vez mais cansada desta minha sina. Até quando terei que subir à balança todas as semanas para me certificar que (pelo menos) não aumento o meu peso?

Fui muitas vezes maltratada pela classe médica. Humilhada até. Em algumas consultas senti-me um bisonte. Tratavam-me como tal.

Um dia, a minha irmã foi comigo a uma consulta. Perante o “ralhete” e humilhação habitual acabou por se exaltar e pediu à médica que me ajudasse a encontrar soluções em vez de me massacrar com os números da balança.

Foi aí que depois de 26 anos de vida vi uma luz ao fundo do túnel.

Há uns meses encontrei uma equipa médica que me quer realmente ajudar. Pela primeira vez conseguiram deixar-me à vontade para falar do meu problema e pela primeira vez me trataram como uma pessoa digna. Os julgamentos ficaram de lado e disseram-me “Estamos aqui para te ajudar! Não estamos aqui para julgar ninguém e, se colaborares, vamos conseguir que sejas uma pessoa mais saudável”.

Médicos destes merecem que me levante e os aplauda.

Desejem-me sorte!